Blindagem, Anistia e o Novo Milagre Brasileiro

 




Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por José Nassif

O Brasil inventou a pós-democracia tropical. Funciona assim: o povo protesta, o Congresso finge que ouve, o STF finge que arbitra e o Executivo finge que governa. No meio disso, quem manda mesmo são os velhos de sempre, aqueles que atravessam regimes, ditaduras, planos econômicos e crises como se fossem imortais. O país quebra, mas eles não.

Essa semana foi exemplar: a PEC da Blindagem e a Anistia cinco estrelas tomaram conta da pauta. As ruas ficaram cheias, cartazes erguidos, vozes cansadas gritando contra a blindagem da elite política. Brasília respondeu com a calma de quem tem ar-condicionado e carro oficial: “Estamos pacificando o país”.

Pacificação, aqui, é um conceito curioso. Não significa acabar com a violência, mas com as consequências da corrupção. Pacificar é garantir que deputados e senadores possam dormir em paz, sem risco de passar férias involuntárias na Papuda. O Brasil conseguiu transformar impunidade em política pública.

Enquanto o povo se estapeava no sol, Hugo Motta surgia no Congresso oferecendo uma “dosimetria”. A proposta soa até técnica, mas é só um jeitinho sofisticado de dizer: “vamos blindar só os amigos mais próximos, não todo mundo”. É como um assaltante argumentando que não matou a família inteira, só alguns parentes de primeiro grau. No Brasil, cinismo é doutrina.

Eis que entra em cena Washington, a mãe brava da democracia. Os Estados Unidos resolveram sancionar a esposa de Alexandre de Moraes com base na Lei Magnitsky. É como se o xerife global tivesse decidido dar bronca na vizinha por bater tapete na janela. O STF reagiu em uníssono: “É injusto! É falso! É narrativo!”. De repente, ministros togados descobriram a dramaturgia. Agora temos a novela das nove do Supremo Tribunal Federal. Faltam apenas closes dramáticos e uma abertura com música de Maria Bethânia.

Para completar a comédia, os americanos cancelaram o visto de Jorge Messias, advogado-geral da União. Que castigo! O homem agora terá que se contentar com férias em Porto Seguro em vez de Miami. Mas não se preocupe: Brasília já é a Disneylândia da política. Temos ratos, temos montanha-russa de escândalos, temos castelos de areia legislativos. Só não temos Mickey porque o mercado de mascote já está saturado de deputados.

Enquanto isso, o Congresso ensaia discutir os poderes do STF. A grande questão: pode ou não pode autorizar busca em gabinetes? Traduzindo: querem garantir que as gavetas continuem servindo como cofres pessoais. Deputado brasileiro tem uma gaveta para cada ocasião: discursos de campanha, recibos falsos, cueca premiada e um fundo secreto para advogados. O Parlamento é a maior lavanderia sem CNPJ da América Latina.

Do outro lado da Praça, Lula embarcou para Nova York. Foi comitiva menor, menos badalação. Vai discursar na ONU sobre democracia. É quase uma piada pronta: o presidente brasileiro falando de democracia em Manhattan enquanto em Brasília a democracia é rifada em leilão do Centrão. É como dar palestra sobre paternidade responsável devendo pensão alimentícia.

E o povo? O povo protesta, leva pancada, segura cartaz, volta pra casa cansado e liga a televisão pra descobrir que nada mudou. A democracia brasileira tem audição seletiva: escuta perfeitamente o som dos talheres nos jantares do poder, mas é surda ao barulho dos megafones de rua.

O mais irônico é assistir STF e Congresso brigando como casal em crise. Eles gritam, ameaçam, expõem a vida privada. No fim, dividem a sobremesa e voltam para casa juntos. Porque, no Brasil, a regra é clara: entre amigos, cadeia não é opção. No máximo, afastamento remunerado, que é prisão domiciliar com direito a passaporte diplomático.

O retrato é brutal: pobre que rouba pão vira manchete policial. Deputado que rouba milhões vira “estrategista político”. O Brasil vive uma distopia em que a lei é aço para os fracos e gelatina para os fortes. Justiça para uns, pizza para outros. E, claro, pizza sem borda recheada — afinal, o orçamento está apertado.

Mas o melhor do espetáculo é perceber que sempre aparece uma solução criativa para salvar a pele dos de cima. Não há crise que dure mais que a imaginação da elite política. Se a cadeia ameaça, inventa-se uma anistia. Se a justiça se aproxima, cria-se uma PEC. Se o povo protesta, chamam de barulho democrático. Aqui, a criatividade só morre quando se trata de melhorar a vida do cidadão comum.

E assim seguimos, nesse carrossel de cinismo. STF xingando Congresso, Congresso xingando STF, Executivo fingindo que apazigua. O país se move em círculos, como carro alegórico de escola de samba decadente: muito brilho na superfície, mas caindo aos pedaços no bastidor.

O milagre brasileiro não é sobreviver à crise. O milagre é sobreviver às soluções que inventam para ela. O Brasil é uma fábrica de desculpas. E, enquanto houver desculpa, não faltará carnaval.

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