Manifestação Unite the Kingdom este sábado em Londres. Foto de Tayfun Salci/EPA
Por Pedro Tavares
O que aconteceu nas ruas de Londres — cem mil pessoas marchando ao som da xenofobia, exigindo o fechamento de mesquitas e conclamando uma “revolução contra o inimigo interno” — não foi um acidente meteorológico da política. Foi o fruto maduro de anos de preparos: políticas que estigmatizaram, discursos que naturalizaram a violência e uma cumplicidade institucional que preferiu o silêncio à defesa da democracia. A marcha foi a colheita de um terreno cultivado com medo.
A extrema-direita britânica não brotou por geração espontânea. Foi alimentada por governos conservadores e setores da oposição que, por temer a perda de eleitorado, foram cedendo pedaços de sensatez à retórica anti-imigração. Quando o preconceito é legitimado por quem ocupa cargos de poder, a rua deixa de ser palco de protesto para virar trincheira de guerra contra o outro.
E o Brasil? Se alguém ainda acredita que isso é “coisa de europeu”, está confortavelmente equivocado. Os sinais estão por toda parte: nas falas de palanque, nas manchetes enviesadas, nas redes transformadas em arena de caça. Aqui também se prepara o terreno.
O Brasil já ensaia sua própria marcha
Em 2018, Jair Bolsonaro simulou um fuzil e prometeu “fuzilar a petralhada do Acre”. Em outras ocasiões falou em banir “marginais vermelhos” da pátria. E para a deputada Maria do Rosário lançou a ignomínia: “Jamais a estupraria porque você não merece.” Palavras que não são apenas imprudentes — são sementes de desumanização. Quando líderes tratam adversários como inimigos, abrem espaço para que a violência deixe de ser exceção e passe a parecer inevitabilidade.
Carla Zambelli, diante da morte do neto de Lula, afirmou com sobranceria que “injustificável é um presidiário vagabundo usar o enterro da esposa, do irmão, do neto e até a morte da cachorrinha para fazer discurso político.” Transformar luto em insulto é a prova cabal de que, para muitos, a dor alheia somente importa quando serve ao cálculo político. A tragédia humana virou munição; a barbárie, espetáculo.
Nicolas Ferreira faz sua parte: descreve militantes como “massa sem pensamento próprio”. A tática é conhecida e antiga — desumanizar para facilitar a perseguição. Quando o adversário deixa de ser humano e vira rótulo — “vermelho”, “marginal”, “massa manipulada” — sua eliminação deixa de provocar horror e passa a ser vendida como limpeza moral.
Hipocrisia moralista: quando vale chorar e quando vale rir?
A morte do deputado americano Charles Kirk mobilizou a extrema-direita brasileira num coro de indignação performática. Mas onde estava essa mesma liturgia da compaixão quando morreram Marisa Letícia, Arthur, Marcelo Arruda? Onde estavam os apelos à decência, os lamentos públicos e as notas oficiais? A moralidade seletiva revela a verdade: não se trata de valores, mas de conveniência. O direito ao luto tem validade por afinidade política; a humanidade é condicional.
História repetida em outros trajes
Não é excesso retórico traçar o paralelo com os anos 30 na Alemanha: Hitler não começou com câmaras ou massacres, começou com palavras, sátiras, caricaturas que tornaram o vizinho suspeito. A Inquisição também iniciou sua máquina não com fogueiras imediatas, mas com difamação, acusação e exclusão social. Hoje, a retórica do “lei e ordem” e a demonização do “vermelho” exercem a mesma função: transformar cidadãos em inimigos políticos cuja existência merece controle, repressão e, eventualmente, eliminação.
Não é metáfora; é advertência histórica. A normalização gradual da violência verbal cria passagens para a violência institucional.
Não se trata de retórica, mas de sobrevivência democrática
Quando partidos do centro se calam, quando parte da mídia relativiza, quando instituições fecham os olhos, a marcha se desloca do asfalto para o parlamento, para o Judiciário, para as escolas e igrejas. As palavras de hoje podem virar os decretos de amanhã. O que começou como espetáculo de rua em Londres pode, se não houver reação, transformar-se em legislação e política de Estado.
Resistir agora ou perecer depois
A extrema-direita não pede licença: ela ocupa espaços. Se hoje vemos a Inglaterra marchar sob estandartes de ódio, amanhã podemos ver o Brasil repetir a história — não como déjà vu pálido, mas como catástrofe atualizada, mais ágil e globalizada.
Neutralidade é cumplicidade. O fascismo prospera no silêncio e na omissão. Defender a democracia exige ruído: denúncia constante, mobilização organizada, coragem intelectual e solidariedade prática. É necessário apontar cada invencionice moral, cada ataque à dignidade, cada tentativa de reduzir o outro a estereótipo.
Se não for agora, quando? Se não for por nós, será contra nós.

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